segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Análise do poema "Solitário", de Augusto dos Anjos

Solitário

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços -

Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

(ANJOS, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. São Paulo: Martin Claret, 2004. P. 59)

Antes de mais nada...

Eu nunca fui um leitor de poesias e poemas. Isto pode soar incoerente com o fato de eu cursar Letras Português. Mas eu não espero que todo mundo pense que o estudante de letras vai ler somente o que gosta durante toda a graduação. Durante o primeiro período do curso, o professor de Estudos Literários I, Leonardo Mendes, apresentou à turma a análise de alguns poemas tanto pela visão que os alunos tinham do texto assim como pela análise mais profunda feita por autores como Antonio Candido, por exemplo.

Fato curioso: apesar da minha parca experiência na análise, interpretação ou simples leitura de poemas, eu tenho uma quantidade vergonhosa de livros desse gênero em casa. Frutos de tentativas, na adolescência, de apreciar um texto que eu não lia à época. Dentre os livros que eu tenho, está Eu e Outras Poesias, única obra publicada de Augusto dos Anjos. É claro que, ao me deparar com a complexidade de termos que o autor usa, me senti travado, assustado, até mesmo burro por não entender nada do que ele dizia.

A poesia que eu escolhi para analisar é uma que sempre me salta aos olhos quando eu pego o livro nas minhas breves e não profundas aventuras nas estruturas poéticas. Há outras poesias muito conhecidas, como Versos íntimos e Psicologia de um vencido. Mas vamos focar em Solitário.

A análise
(pode sofrer alterações/correções)

O poema é formado por quatro estrofes, sendo as duas primeiras de quatro versos e as duas últimas, de três. Em outras palavras, trata-se de um soneto, pois é formado por dois quartetos e dois tercetos. A primeira estrofe é formada por versos octossilábicos de esquema rítmico cruzado ABAB; a segunda estrofe é formada por versos enassilábicos de esquema rítmico cruzado ABAB; já a terceira, possui versos decassilábicos de esquema rítmico CDE e a última possui versos eneassilábicos e esquema rítmico CDE. Sintetizado, fica assim: 

Octossilábico (8 sílabas)
Co / mo um / fan / tas / ma / que se / re / fu / gia A
Na so / li / dão da / na / tu / re / za / mor/ ta, B
Por / trás / dos / er / mos / tú / mu / los, um / dia, A
Eu / fui / re / fu / giar-me / à  / tu / a por / ta! B

Eneassilábico (9 sílabas)
Fa / zi / a  / frio / e o / frio / que / fa / zi /a A
Não / e / ra / esse / que a / car / ne nos / con / for/ ta... B
Cor / ta / va / assim / co / mo em / car/ ni / ça / ria A
O a / ço / das / fa / cas / in / cisi / vas / cor / ta! B

Decassilábico (10 sílabas)
Mas / tu / não / vi / este / ver / mi / nha / Des / gra /ça! C
E eu / sa /í, / co / mo / quem / tu / do / re / pe /le, D
- Ve / lho / ca / i / xão a / ca / rre / gar / des / tro / ços - E

Eneassilábico (9 sílabas)
Le / van / do a / pe / nas na / tum / bal / car / ca / ça C
O per / ga / mi / nho / sin / gu / lar / da / pe / le D
E o / cho / ca / lho / fa / tí / di / co / dos os / sos! E

Tendo passado por alguns dos aspectos estruturais do poema, passo agora à interpretação dele.

O poema se chama Solitário, portanto, é sobre um eu lírico que vive em solidão. Não podemos afirmar que se trata de um homem ou mulher, mas de alguém que sofre profundamente por um sentimento não correspondido ou curado. Em nenhum momento, o poema diz que se trata exclusivamente de amor romântico. Porém, a pessoa a quem o eu lírico se dirige pode tanto ser um amigo ou alguém com quem ele se relacionou intensa e/ou amorosamente. O fato é que, ao se comparar a um fantasma (Como um fantasma que se refugia / Na solidão da natureza morta,), o eu lírico nos diz que  já esteve presente na vida da outra pessoa e, por quaisquer motivos, deixou de estar e, depois, retornou para assombrá-la.

A primeira estrofe remete à solidão de forma direta ao usar a palavra solidão e, de forma figurada, quando se refere aos ermos túmulos. O sentimento de solidão é reforçado duas vezes quando o eu lírico sente necessidade de retirar-se para um lugar em que haja segurança, amparo, consolo, ou seja, refúgio (Como um fantasma que se refugia (...)/ Eu fui refugiar-me à tua porta!).

Na segunda estrofe, a dor do eu lírico se intensifica. Há o frio do clima externo, como o frio do inverno ou de uma noite assim aclimatizada. Mas também há o frio como sensação interna. Sendo este frio aquele que um agasalho só não dá conta de fazer passar, mas em que há a necessidade de outra pessoa para se fazer aquecer (Fazia frio e o frio que fazia / Não era esse que a carne nos conforta...). É um frio que corta, fere e machuca, reafirmado no uso do verbo cortar no pretérito imperfeito e no uso do substantivo facas (como objeto cortante), no adjetivo incisivas (significando cortante) e na retomada do verbo cortar no presente do indicativo; fazendo, assim, com que o eu lírico se sinta despedaçado (Cortava assim como em carniçaria / O aço das facas incisivas corta!).

A terceira e quarta estrofes já falam sobre a rejeição que o eu lírico sofre ao buscar o refúgio para a desgraça que o acomete e uma forte aproximação com a morte ao usar léxicos referenciais. A desgraça que ele sente não é uma infelicidade passageira, simplória. É uma Desgraça com D maiúsculo, como algo concreto e palpável. (Mas tu não vieste ver minha Desgraça!). O eu lírico não encontra o amparo que buscou e, portanto, se afasta, se retira, e não quer a aproximação de mais ninguém (E eu saí, como quem tudo repele,), pois agora ele se sente um invólucro de coisas mortas; coisas essas que são os destroços cortados na carniçaria (- Velho caixão a carregar destroços -).

Por fim, o eu lírico demonstra um forte desprezo pelo que resta de si mesmo. Ele se vê como um medonho esqueleto, com uma pele esquisita, velha, sentindo no vazio dentro de si nada além do que lhe sobrou sentir: o soar dos ossos (Levando apenas na tumbal carcaça / O pergaminho singular da pele / E o chocalho fatídico dos ossos!).

É importante salientar que, na Internet, é possível encontrar este mesmo poema com uma versão minimamente diferente da publicada pela Editora Martin Claret, sobre a qual se manteve prioritariamente a análise. Na segunda estrofe, no verso seis, onde se lê “conforta”, troca-se por “contorta”. Neste caso, é resignificado na função de verbo, trazendo o sentido, no poema, de “retorcer-se ao frio que faz”. Já a outra mudança, encontra-se no uso da palavra “tumba” no lugar de “tumbal”, na quarta estrofe, verso doze. Tumba assume-se aqui como sinônimo de caixão, o momento final da vida, o que fortalece a sensação de vazio que o eu lírico sente pela falta de empatia com que foi tratado.

Considerações finais

Analisar e interpretar um poema não é uma tarefa fácil para se fazer em pouco tempo. Dependendo da complexidade do poema, um dia só não é suficiente. Eu tenho meu exemplar de Eu e Outras Poesias desde 06 de outubro de 2004, poucos meses antes de concluir o ensino médio. A data está anotada na orelha do livro. Apesar de tê-lo pegado algumas vezes desde então, eu nunca me preocupei em analisar e interpretar um poema. Principalmente, este em questão. Minha interpretação sempre foi sobre uma pessoa solitária, angustiada, que sente profundamente a dor de estar sozinha.

Solitário é, para mim, um poema bastante pessoal.

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